sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Berlengas (3)

- Por Raul Brandão
25/08/1909
( Em " Os Pescadores )
- continuação...
Mesmo junto à ilhota armam os pescadores a valenciana, porque este é um dos pontos mais piscosos da costa. Ainda hoje a sardinha, que salta ao lume de água, acode em bandos compactos. Pesca-se o pargo mais saboroso de Portugal e a dourada com riscos na cabeça, de oiro cor de fogo da louça Talavera, o atum, a muge, o godilhão e a lagosta, que se apanha em covos. Fisgam-se nas misteriosas cavernas polvos velhíssimos como os de Vítor Hugo, que vivem em buracos onde só chega uma luz amortecida e verde, atenuada pelas algas desconformes. Aqui têm também as aves marítimas o seu ninho predilecto - os airós, as galhetas e as gaivotas, que passam num grasnido quase humano e que criam os filhos nos paredões a pique, onde só se chega arriscando a vida.Neste fim de Agosto passam para o sul bandos de patos formados em ângulo agudo, com o guia no vértice; pombos cinzentos que voltam de terra com os papos cheios de sementes; maçaricos-reias que piam ao pousar no areal, levantando voo para piar mais longe; e o cisne negro que nos dias de temporal dança ao desafio na crista das vagas, furando-as como bom mergulhador.

Se houvesse justiça no planeta, eu já tinha sido nomeado governador deste castelo, onde vivem três veteranos que de velhos criaram musgo - ou pelo menos faroleiro. Como sou um contemplativo, o lugar convinha-me perfeitamente. Os homens devem ser felizes diante deste espectáculo sempre igual e sempre renovado. De Inverno nenhum barco atraca às Berlengas. Só e Deus no mais belo sítio da costa portuguesa!...Atrevo-me a falar a um velho musaranho, de focinho arreliador, que está metido no farol, de costas para o mar, fingindo que me não vê, a esfregar e a polir os metais reluzentes.

- Hen?...

- Hum!...

Rosna e não diz palavra que se entenda.

- Olá!

Olha-me com desprezo e continua a polir os metais já polidos, como se eu não existisse. Mas não desanimo facilmente e teimo:

- Que beleza, han?!...

Toquei-o. O homem sacode os ombros, levanta-se, atira o pano fora, encara-me de frente, com os bigodes assanhados entre as rugas e um olho azul de faiança cheio de cólera:

- Que beleza, o quê? Que beleza?...Isto?! - E ri-se. - O vento e o mar! Sempre o vento e o mar! O vento, que no Inverno não me deixa chegar à porta, e o mar todo o dia, toda a noite a bramir! O mar desesperado, o vento desesperado...Eu não sou um faroleiro - sou um náufrago. Que beleza, hem?...Nem posso dormir! Toda a noite o vento uiva, toda a noite o mar ecoa, ameaçando submergir esta ilha do Diabo!

Julguei-me autorizado a interrompê-lo:

- Mas no Verão é esplêndido...

-Nem olho. Só me resta uma esperança - fugir. Se não me mudam, endoideço. O amigo sabe quantos endoideceram já? Três!...

E atirando os braços para o ar:

- Uma calamidade! Aqui não se sabe nada, aqui não chega nada. Nunca! Nunca! Nem a pneumónica aqui chegou. E não posso ter uma couve, não posso ter uma abóbora...Os coelhos devoram tudo. É uma praga!

-Dê-lhes tiros.

- Tiros?! - E ri-se com dois dentes de desprezo. - Quando quero um coelho, ato um anzol a um pau, meto o pau na lura e tiro o coelho para fora; quando quero um peixe, ato uni anzol a uma linha e deito a linha à água...Mas o que eu quero é fugir! Fugir! Fugir para muito longe, para onde não oiça o mar, para onde não veja o mar!

Rosnou...Percebi que repetia com escárnio: - Que beleza, han!... - E voltando-se, outra vez com o pano na mão, continuou a esfregar e a polir com desespero os metais - de costas viradas para o mar...

Olho pela derradeira vez. É para sempre que quero fixar a imagem, a última, a definitiva, a essencial, do morro vermelho a emergir do mar imóvel, cheio de pedras espumantes - a da Velha, a da Estela, a Pedra Redonda, a Pedra de Todo- o -Peixe, o Guilhão...Duas manchas bastam-me para toda a vida, uma etérea, a outra sangrenta, com um castelo queimado e requeimado como um velho cachimbo ao pé do vidro grosso da água. Duas manchas e um pormenor: o fio de areia onde ficou impresso um pé delicado de mulher...

Regresso num fim de tarde toda de oiro, num mar todo verde. São outras três horas a remo. Deito-me no fundo enxuto do barco e absorvo-me na luz que se transforma. É roxa agora. Desvanece-se mais. Estou encerrado numa grande jóia translúcida e viva - viva - que pouco e pouco muda de cor. Violeta, toda violeta, e vai desmaiando como quem morre devagarinho com a saudade...

25/08/1919

Raul Brandão

( Em " Os Pescadores " )

9 comentários:

C Valente disse...

Bom fim de semana , e mesmo as Berlengas ventosas é sempre bonita
Saudações amigas

Maria disse...

Há tantas estórias contadas sobre a Ilha...
Até a de um homem que, por amor, se refugiou na ilha, na casa onde se guardava a palha do burro, e que viveu lá isolado 17 anos... e tantas outras...
Percebo o faroleiro. Hoje em dia os barcos vão lá, mesmo com o tempo menos bom. E digo-te que é uma sensação única ficar na ilha, no inverno, na casinha que está do lado direito da foto (casa da inspecção), e ouvir o vento uivar e o mar a bater....

Obrigada por estes momentos.
Bom fim-de-semana

Beijos

Unknown disse...

Maria

Chegou o momento de te dizer que tu e o teu blogue, juntamente, claro, com o desejo, muito antigo meu, de ir às Berlengas, que me lembraram de reler o livro de Raul Brandão e de "postar" a sua linda prosa. Lembrei-me até de pedir que me enviassem - lembrei-me que tu terias - fotos das Berlengas para ilustrar. Sempre era mais pessoal do que ir ao Google. Mas,tive receio de ser mal interpretado... Sei, como diz o Poetaeusou, que as Berlengas são já diferentes hoje. Claro. Mas acho que foi uma maneira de homenagear um grande escritor, ainda por cima do Mar. Obrigado.
Abraço.
Bom fim de semana.
Eduardo

Unknown disse...

C. Valente

Obrigado pela visita e bom fim de semana. Abraço.
Eduardo

poetaeusou . . . disse...

*
sabias que até 1935,
os batéis da nazaré iam
a remos e á vela aos pesqueiros
da berlenga, arribando com
frequência ao porto de peniche,
á época ainda em embrião, onde
alguns se fixaram ?
Como dizia procuravam o congro,
o cherne, a pescada e o goraz,
o congro e o cherne nas chamadas
poitadas, ou pedras, omitidas
por raul brandão, e m especial.
a pedra dos algarvios, e a pedra
dos nazarenos, onde estão esses
pesqueiros ? foram arrasados
pelos espanhóis com as suas
redes de arrasto e curta malha...
,
um abraço amigo,
,
*

Unknown disse...

poetaeusou

Obrigado pela informação. Sabia que ao postar o texto, antigo, de Raul Brandão, iria fazer com que aqueles que conhecem bem a região, viessem divulgar as novas realidades. É o que está a acontecer. Também a Maria sabe muito sobre as Berlengas e há-de dizer alguma coisa, se lhe apetecer, claro. Qunto a mim e aos restantes " aprendizes " só têm de ficar contentes. Pela parte que me toca...tenho o apetite cada vez mais aguçado para lá ir.
Abraços amigos.
EA

Maria disse...

Se quiseres fotografias das Berlengas não hesites em pedir. Tenho milhares. As mais antigas terão que ser digitalizadaas, pois claro, mas mais recentemente tenho a máquina digital...
Fotos de TODOS os meses do ano, na ilha. Ou seja, conheço a ilha em todos os meses do ano. Se precisares, alguma coisa se há-de arranjar...
E sobre estórias (o moinho e onde está a mó) e sobre pescas (o famoso "broeiro") e outras estórias, tenho muta coisa no blog, em anos anteriores. Não tenho tudo. Até porque há coisas (estórias) que não se põem em blogues.... :)))
Tenho ainda um mapa da ilha, feito por quem conhecia a ilha como os dedos da mão, com os nomes dos vários pesqueiros e grutas que por lá existem. Talvez em Junho ou Julho de 2007.

Um beijo

Maria disse...

curiosamente, há quem lhe chame a "ilha do sumiço"...
gente tonta, certamente, porque nunca ninguém se perdeu lá, nem sumiu. Mas há quem se perca pela ilha...

Unknown disse...

Maria

Obrigado pela tua generosidade.
Nunca se sabe se não precisarei.
Mas...na altura em que reproduzi Raul Brandão...é que pensei que seria giro alguém me enviar fotos, cuja autoria obviamente seria indicada...Mas, pronto.
Obrigado, do fundo do coração.
Quanto aos teus blogues antigos...talvez lá vá dar uma mirada.
Bj.
EA