quinta-feira, 25 de junho de 2009

Convidado do mês: António Ramos Rosa

Do livro: Poesia, liberdade livre
( Foto Google )
« Numa época de imperialismos ideológicos em que de todos os lados se pretende arregimentar os homens e em que estes, por seu turno, procuram a sua segurança nas diversas formas de paternalismo em que aliviadamente possam abdicar da sua personalidade, a poesia, por muito restrito que se afigure o seu âmbito, constitui actualmente uma verdadeira potência regeneradora. Não se pode viver plena e produtivamente sem espontaneidade criadora e a poesia é a actividade mais qualificada em que esta se manifesta; a vida sem essa potência, sem o exercício de autonomia integrante, que só a função poética lhe pode permitir, abastarda-se, anquilosa-se, ou o que é pior, recai nas formas mais vis da destrutividade e da desumanização. O homem, que procura unir-se aos outros exclusivamente por intermédio de uma ideologia, cria uma relação artificial extremamente perigosa, pois automaticamente é levado a desprezar e hostilizar os que não partilham das suas crenças, na medida precisamente em que se despersonaliza e sufoca em si em todo o impulso criador. É este conceito degradante de sacrifício que as místicas partidárias têm posto em voga. Esta é a falsa e destrutiva unificação que o poeta condena. O grande psicanalista Erich Fromm diz-nos do perigo que resulta deste sacrifício da personalidade: « A vida tem um dinamismo interior próprio, tende a crescer, a ser exprimida, a ser vivida. Parece que, se esta tendência é contrariada, a energia dirigida para a vida sofre um processus de decomposição e transforma-se em energia de destruição...quanto mais a vida é contrariada, mais forte é a impulsão para a destruição.» (1)
A poesia situa-se pois ao nível deste humanismo concreto e libertador, antidogmático por excelência. Como poderia ela pactuar com qualquer espécie de autoritarismo, ainda quando acobertado sob a forma de um idealismo racionalista ou de pretensas normas de universalidade abstracta? Por isso, a poesia moderna é um verdadeiro teste do grau de espontaneidade e de vida criadora. Os que a negam, alegando não compreendê-la, ou não ter ela sentido, provam a sua submissão a princípios e normas que pretendem regular em absoluto a totalidade da vida psíquica, cuja riqueza e espontaneidade lhes escapa quase inteiramente. A exigência de compreensão racionalizante da poesia é dos sinais mais reveladores da incompreensão radical do fenómeno poético e de uma forma de estulto orgulho que assenta geralmente na perda de um contacto original e fecundo com a vida.
O homem anseia ser uno com o mundo e consigo mesmo, transcendendo a dicotomia consciência-ser, recuperando-se nas suas origens. Essa unidade só a poderá conquistar através de um desenvolvimento livre das suas potencialidades e não através de qualquer submissão ideológica ou de qualquer apriorismo que lhe pretenda traçar de antemão as vias da sua própria salvação. O poeta tem o dom de ultrapassar o nível da consciência reflexiva e de se instalar, por momentos, na consciência profunda ao nível da espontaneidade criadora, onde as energias naturais se desencadeiam na linguagem, antes de qualquer conceptualização. A este nível o homem já não é apenas um elo histórico, mas uma fonte de criação pela qual a si mesmo se cria e se inventa. O poeta assume totalmente o homem e nesta assunção reside a sua verdadeira função civilizadora. ( Empregamos aqui a palavra civilização num sentido mais profundo do que o habitual ). Que poderá limitá-lo nesta procura interminável de si mesmo, ou seja, nesta descoberta permanente do seu próprio ser?
( Foto, da autoria de Lucília Ramos: http://lucy-natureza.blogspot.com )
Esta lição de liberdade que nos dá todo o verdadeiro poeta é o contraveneno mais fecundo para todas as formas de degradação que avassalam o ser humano na nossa época. Isolado, ignorado, alheio às consagrações limitadoras, ridicularizado e vilipendiado quantas vezes, o verdadeiro poeta sabe que não vive à margem da humanidade concreta e viva, pois não ignora que a sua solidão envolve uma forma mais profunda de comunhão e irradiação. Não é a sua finalidade, segundo René Ménard, (2) servir o homem, mas fazê-lo, criá-lo. A poesia não traduz apenas relações preexistentes de uma harmonia com a natureza e os homens, ela própria determina e estabelece tais relações, por virtude da sua própria espontaneidade criadora. Desse modo, o poeta exemplifica, no mais alto grau, o tipo do homem requalificado. A consciência poética é a consciência dos valores geradores da mais alta e completa humanidade, a consciência que transcendeu todas as dicotomias da consciência privada, para alcançar o humano na sua dimensão total. Esta consciência deve ser suficientemente lúcida para vencer a aparente frustação social do poeta na nossa sociedade. A poesia é criadora de valores - logo profundamente social. Ela atinge o social, não parte dele; daí a preeminência do poeta como orientador livre, como criador de valores. Logo, o primeiro lugar para a poesia, isto é, para o homem inteiramente humanizado. »
(1) Marelles sur le Parvis ( Essais de Critique Poétique ) , Librairie Plon (2) La condition Poétique, Col. Espoir, Gallimard.

18 comentários:

Paula Raposo disse...

A Poesia é uma arte que só alguns têm. Não é Poeta quem quer, mas quem nasce. Beijos.

Unknown disse...

Paula
Inteiramente de acordo.

LuNAS. disse...

Eduardo!
Estou deliciada com este - chamaria- ensaio!
'Esta consciência deve ser suficientemente lúcida para vencer a aparente frustação social do poeta na nossa sociedade'
Dizes, também, que o poeta cria valores. Acredito. Como acredito que, em muitos casos o poeta é um alter ego de um ser. E os valores, sonhos, ilusões, etc... do 1º estão presentes no ser que leh emrpesta a mão. E ia por aqui fora...
Adorei ler-te. amigo,
Beijinhos

Unknown disse...

Lúcia
Só que o texto não é meu. É do António Ramos Rosa. Claro que concordo com ele. Foi bom rever-te ( ouvir-e ).Já vim do Douro. Aquilo é liiiiiinnnnddddo!!

Clotilde S. disse...

Eduardo,
Uma excelente escolha a deste texto que nos remete para a LIBERDADE do Poeta e também para a sua inevitabilidade, uma vez que não se vive plenamente sem criação. Gostei muito.

Agora vamos a outro assunto: o Douro.

:)) Vieste de lá agora e eu parto para a Régua no Sábado de madrugada.Vou lavar a alma no Douro e, quem sabe?, talvez criar algum Poema.

Não me chames macaquinho de imitação, porque de macaco só o meu signo chinês. hehhehe Já tinha este passeio combinado há meses.

Um abraço grande de LUZ desta tua amiga,

Clo

utopia das palavras disse...

Olá Poeta das Águas, regressado delas,
Eu concordo com a Lucy quando diz..." o poeta é um alter ego de um ser"

Um dia, fingindo ser poeta,escrevi na brincadeira:

Eu sou
Universo
Faço o mar
O vento e o amor
Sou navio
que não afunda
Sou Alter
que fecunda
a terra...!

Amei o texto de António Ramos Rosa e a foto da Lucy!

Beijos

Unknown disse...

Clo
Fazes bem. É a terceira vez que lá vou. Considero aquelas paisagens divinais. Abraço de muita luz.

Unknown disse...

Mourinha
A foto da Lucy é liiinnnnnda!
Mas quem escreveu sobre o alter-ego....foi a Lucia!
São assim as mouras. É por isso que gosto delas.
Beijo com arabescos

Agulheta disse...

Eduardo! Adoro ler Ramos Rosa,poesia que sempre nos transmite muita coisa em comum com nós e avida de todos os dias.
Beijinho

Unknown disse...

Agulheta
Olá, amiga. Bom fim de semana no Moledo. Leste o meu comentário- remember sobre amores no Moledo no blogue da Lucy?

. intemporal . disse...

querido Eduardo.

abraço-TE muito.

e o resto não digo ou re.digo.

sinto.

grat.íssimo.

LuNAS. disse...

Eduardo... às vezes fico tantan - pensei que o texto, a partir da foto para baixo, fosse teu!
Mas não te peço desculpa. Não vale apena depois de nos teres trazido esta preciosidade para aqui!

Ainda bem que vieste com os olhos cheios de coisas lindas!:)
Noite feliz

Unknown disse...

Paulo
Ora viva! Viva!
Ninguém destroi a verdade e o amor.


Lúcia
O rosmaninho é flor bonita, mas também se engana, o que não é grave, porque bonita sempre é...

poetaeusou . . . disse...

*
Eduardo
belo post, parabens,
,
Este homem que pensou
com uma pedra na mão
tranformá-la num pão
tranformá-la num beijo
Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra
,
in-antónio ramos rosa,
,
um abraço
,
*

Unknown disse...


Lindo o conteúdo do comentário. Abraço muito amigo.

f@ disse...

Eduardo,
desculpas pela falta de tempo... ainda nem li este post ....porque já só tenho um olho aberto... sono...

amanhã volto para ler...

só quis dar um beijinho e desejar bom fim de semana

+ abraço e beijinho imenso

Graça Pires disse...

Um texto fantástico de quem sabe, como Ramos Rosa o lugar da poesia. De facto toda a estética contém uma ética.
"A consciência poética é a consciência dos valores geradores da mais alta e completa humanidade, a consciência que transcendeu todas as dicotomias da consciência privada, para alcançar o humano na sua dimensão total"
Obrigada por este momento.
Um beijo.

Unknown disse...


Mesmo só com um olho aberto...que bom ver-te! Beijos.

Graça
Reconfortantes as tuas palavras para quem, como eu, também gosto tanto do texto que postei! Beijos.