quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Convidado deste mês: Manuel da Fonseca

1. Sol do mendigo
( Foto de Lucy, a quem muito agradeço )
-
Olha o vagabundo que nada tem
e leva o Sol na algibeira!
Quando a noite vem
pendura o Sol na beira dum valado
e dorme toda a noite à soalheira...
Pela manhã acorda tonto de luz.
Vai ao povoado
e grita:
- Quem me roubou o Sol que vai tão alto?
E uns senhores muito sérios
rosnam:
- Que grande bebedeira!
-
E só à noite se cala o pobre.
Atira-se para o lado,
dorme,dorme...
-
2. Serenata
-
Meninas casadoiras que mostrais as prendas, da janela,
fechai a janela quando eu passar
que eu só trago amor para vos dar.
E mais que amor
só as minhas histórias de vagabundo
e o meu desejo de ir embora pelo mundo...
...a vida é tão pouca
e o mundo é tão grande
que terra aonde eu passe não posso voltar.
Meninas casadoiras,
uma de vós, esta noite,
esqueça tudo que lhe ensinaram,
abandone o bordado e o estudo do piano
e seja mulher, simplesmente mulher.
Então ninguém mais do que eu terá tesouros para vos dar!
Mas se de vós todas, nenhuma quiser,
ó meninas casadoiras que mostrais as prendas, de janela,
fechai a janela quando eu passar...
-
3. Aldeia
-
Nove casas
duas ruas,
ao meio das ruas
um largo,
ao meio do largo
um poço de água fria.
-
Tudo isto tão parado
e o céu tão baixo
que quando alguém grita para longe
um nome familiar
se assustam pombos bravos
e acordam ecos no descampado.
-
4. Estradas
-
Não era noite nem dia.
Eram campos, campos, campos
abertos num sonho quieto.
Eram cabeços redondos
de estevas adormecidas.
E barrancos entre encostas
cheios de azul e silêncio.
Silêncio que se derrama
pela terra escalavrada
e chega no horizonte
suando nuvens de sangue.
Era a hora do poente.
Quase noite e quase dia.
-
E nos campos, campos, campos
abertos num sono quieto
sequer os passos de Nena
na branca estrada se ouviam.
Passavam árvores serenas,
nem as ramagens mexiam,
e Nena, pra lá do morro,
na curva desaparecia.
Já da noite que avançava
os longes escureciam.
Já estranhos rumores de folhas
entre as esteveiras andavam,
quando, saindo um atalho,
veio à estrada um vulto esguio.
Tremeram os seios de Nena
sob o corpete justinho.
E uma oliveira amarela
debruçou-se da encosta
com os cabelos caídos!
Não era ladrão de estradas,
nem caminheiro pedinte,
nem nenhum maltês errante.
Era António Valmorim
que estava na sua frente.
-
Nena de Montes Velhos,
se te quisessem matar
quem te havera de acudir?
-
Sob o corpete justinho
uniram-se os seios de Nena.
-
- Vai-te António Valmorim.
Não tenho medo da morte,
só tenho medo de ti.
-
Mas já a noite fechava
a saída dos caminhos.
Já do corpete bordado
os seios de Nena saíam
- como duas flores abertas
por escuras mãos amparadas!
Ai que perfume se eleva
do campo de rosmaninho!
Ai como a boca de Nena
se entreabre, fria, fria!
Caíu-lhe da mão o saco
junto ao atalho das silvas
e sobre a sua cabeça
o céu de estrelas se abriu!
-
Ao longe subiu a Lua
como um Sol inda menino
passeando na charneca...
Caminhos iluminados
eram fios correndo cerros.
Era um grito agudo e alto
que uma estrela cintilou.
Eram cabeços redondos
de estevas surpreendidas.
Eram campos, campos, campos
abertos de espanto e sonho...
-
Manuel da Fonseca
( In Obra completa, Obra Poética )

9 comentários:

Agulheta disse...

Olá Eduardo.Eu adoro ler Manuel da fonseca,tem poemas lindíssimos entre os quais aqui neste post.
Agradeço a visita no blog feita.
Beijinho de amizade
Lisa

Paula Raposo disse...

Uma maravilha! Beijos.

Anônimo disse...

Quantas vezes, nas minhas vagadundagens, «disperso nas horas/incerto nos passos», a poesia do Manuel da Fonseca foi o meu 'sol na algibeira'...
Sei que, neste blogue, ele será convidado permanente. Ele merece e os leitores também.
Um abraço.
PM

gaivota disse...

que maravilha o que aqui enconto!
e logo este...
obrigada, eduardo, vou ler mais uma vez...
beijinhos

Lucília Benvinda disse...

Pois é, amigo, sempre deu para vir até aqui ler as poesias que vai postando. Não sem antes ter 'acendido uma velinha' à Senhora da Luz :)...

Não conhecia este autor, ainda bem que vais divulgando.

Um beijinho e obrigada pelo apoio.
C'est moi, aquela que troca de identidade com a 'oitra' - a maria.

Graça Pires disse...

Manuel da Fonseca é um dos meus poetas muito queridos. Tem uns poemas que falam do quotidiano e do sentir das gentes. É um óptimo convidado.
Beijos, Eduardo.

Lumenamena disse...

Semana dedicada a um grande poeta. De outra forma não podia ser, já que, para ele a realidade, ideia e poesia não existem separadamente, são uma mesma realidade, a única realidade que a sua sensibilidade conhece.

Abraços,
Lumena

gota de vidro disse...

Palavras?
Desnecessárias.....

Simplesmente belo

Adorei

Bom fim de semana

Bjitos da gota

Deusa Odoyá disse...

Olá meu querido amigo Eduardo!
Amei os poemas, simplismente belos e sensíveis.
Parabéns pois sabes apreciar uma bela leitura.

Uma smana de muitas realizações e paz.
Beijinhos meu amigo.
Regina coeli.